Sérgio Dávila
Folha de s.Paulo, 12 April 2000
A voz que atende o telefone continua rascante, mas perdeu parte do brilho. Nina Simone, uma das mais completas pianistas de jazz em atividade e ainda uma grande cantora, volta ao Brasil para dois shows em São Paulo, amanhã e domingo.
A voz agora menor se deve aos tonéis de champanhe que ela gosta de entornar, sempre Cristal ou Moët & Chandon Brut Imperial, e à sua idade -a música tem 67 anos. "Não é fácil ser Nina Simone", diz, resignada.
Nascida em Tryon, na Carolina do Norte (EUA) como Eunice Kathleen Waymon, começou a cantar pequena, num coral de igreja conduzido pela mãe, o que a levou mais tarde ao jazz.
Aos 10 anos, apresentou-se pela primeira vez em público, tocando piano. Na ocasião, seus pais foram retirados da primeira fila do auditório, por serem negros, e mudados para o fundo; estava plantada a semente da luta anti-racismo que marca sua carreira desde então e até hoje.
Estreou no disco em 1957, com"Jazz as Played in an Exclusive Side Street Club". Não grava em estúdio desde 1993 ("A Single Woman").
Esteve no Brasil pelo menos duas vezes antes desta: em 1997, quando se apresentou no mesmo Bourbon e tocou ao ar livre no Ibirapuera, para 35 mil pessoas; e na edição de 1988 do Free Jazz Festival, um show inesquecível, em que martelava o piano com raiva enquanto tocava "Don't Let Me Be Misunderstood".
Sobre os shows desta semana, Nina Simone falou à Folha por telefone de sua casa, na cidade de Bouc-Bel-Air, perto de Aix-en-Provence, no sul da França, onde mora desde 1993.
Folha - Gostaria de falar com a sra. Nina Simone.
Nina Simone - Doctor Simone, por favor.
Folha - Dr. Simone?
Nina - Sim, recebi há alguns anos o título de doutora honoris causa e desde então prefiro ser chamada de dr. Simone.
Folha - O que a sra. pretende tocar no Brasil, dr. Simone?
Nina - "Ne me Quitte Pas". Vocês gostam de "Ne me Quitte Pas", do Jacques Brel, aí?
Folha - Imagino que sim.
Nina - Mas gostam mais da minha versão ou da de Edith Piaf?
Folha - Acho que a sua é mais popular.
Nina - Ótimo. Vou tocar então "Ne me Quitte Pas". O que mais? "Nobody's Fault But Mine", minha, "In the Morning", do Barry Gibb, "Moon Over Alabama", do Weill e do Brecht, "Mississippi Goddam!", que eu adoro, "The King of Love Is Dead", que é uma homenagem ao dr. Martin Luther King. Toco ainda "Just Like a Woman", do Bob Dylan. E uma ou duas mais.
Folha - Alguma brasileira?
Nina - Não, nada brasileiro. Não sou populista.
Folha - Como vários jazzistas, a sra. também deixou os EUA e vive na França. Por quê?
Nina - Aqui eu sou mais respeitada, as pessoas me dão mais valor. Os EUA estão no fim. Não pretendo voltar a morar lá.
Folha - Seu último álbum de estúdio é de 1993. Por que tanto tempo sem gravar?
Nina - Estou muito velha, não quero gravar mais nada. Não é fácil ser Nina Simone.
Folha - Por quê?
Nina - Porque para ser a melhor pianista de jazz é preciso muita prática. Ainda hoje eu pratico de 4 a 6 horas por dia...
Folha - Além de ensaiar e de se apresentar em shows, o que mais a sra. tem feito?
Nina - Recentemente gravei seis programas de rádio para a BBC 2, de Londres. Chama-se "The Nina Simone Collection", só com músicas de que gosto.
Folha - O que a sra. ouve hoje em dia?
Nina - (grita para sua assistente) Querida, o que eu ouço hoje em dia mesmo? (voz baixa, ao longe) "Miles, Ray Charles, Steve Wonder". (ela repete) Miles, Ray Charles e Steve Wonder.
Folha - Alguém novo?
Nina - Não conheço ninguém da nova geração.
Folha - Nesta mesma semana, estava programada a apresentação de Diana Krall no Brasil, que acabou cancelada. Como a sra., é uma pianista e cantora de jazz, só que mais nova e branca. Já ouviu falar dela?
Nina - Não tenho a menor idéia de quem você está falando. Eu sou Nina Simone. Ela é quem?